domingo, 9 de novembro de 2008

Eu e Ela

Confesso que a preguiça me consome e as vezes passo dois dias e meio sem vê-la, nunca mais do que isso. Passadas 12 horas do terceiro dia, bate aquela saudade imensa do odor de seu corpo, (algo parecido com cheetos devido ao contato diário com o cimento e suor das patas) das suas pintas, do seu olhar vacilante descarado, dos empurrões, dos beijos mal cheirosos a ração podre, das mordiscadas doloridas em minhas mãos e o melhor: quando ela se deita pra que eu lhe acaricie a barriga; hábito raro comigo, por isso especial.

Essa noite decidi subir calmamente para evitar emoções fortes, em breves palavras: quando eles te enchem de lambidas suculentas, arfadas na sua cara, pingos de baba no seu pé e o convite a correr atrás deles (isso pra alguém como eu, super-sedentária, é terrível... sempre fico devendo). Ela estava dormindo, acendi a luz e falei docemente “eii menina...” e ela veio, assim como minha voz, doce em minha direção me recebendo com muito carinho e um bocejo poderoso como quem diz “aah... é você... pensei que nunca mais fosse aparecer”. Sentei na sacada da janela e pus a observar as pessoinhas lá embaixo conversando no ponto de ônibus, sempre atenta a ela, pois qualquer surpresa abrupta e era uma vez Teka no andar de baixo com toda a certeza, sem vida.

Um barulho estranho chamou-me a atenção, olhei para trás e vi que estava com pedaços de ossos e pregadores de roupa na boca. Recolhi os restos mortais metálicos (pois os de madeira já estariam na merda, ou no estômago se juntando a ela) e joguei no lixo. Os ossos eu deixei. Aproximei-me fazendo carinho em sua cabeça, depois no corpo todo e ela se virou de barriga pra cima... Toda lindinha com a barriguinha quente, aliás, como todo o seu corpo, sempre caloroso. Minha coluna começou a doer por conta da posição “de cócoras” e voltei à sacada. Ela começou a correr de modo a chamar-me atenção, era hora do convite inevitável: “venha, quero ver se consegue tomar o osso de mim!” – “hoje não, Ju... Não to afim” Respondi apenas com o olhar. Sendo assim, sentou-se frente à casinha e pôr-se a roer os ossinhos já gastos como se determinasse ficar ali até dissolvê-los. Lembrei-me dos meus brigadeiros grudentos que saem do ponto, e as minhas pipocas que nunca tiveram seus casamentos bem sucedidos dando-me trabalho e dor na mandíbula. Imagino que ela, ou todos eles, tenham mandíbulas suficientemente poderosas para gastar todo esse tempo roendo coisas.

Sentei no chão com encostada em uma das colunas da área e decidi que ficaria ali por alguns longos minutos a observá-la sentada distraindo-se com os ossos. Como ela é linda, corpo proporcional, músculos em vigor, rabo perfeito com o caimento perfeito, uma legítima Dálmata de dar inveja. Imaginei-a com suas crias correndo e brincando com elas e comigo, como ficará o seu barrigão, e o momento sublime de dar à luz, arfando ansiosa a esperar pelos seus filhotes. Tenho meus princípios, sei da importância da castração e todo o blá blá blá que ultimamente virou “modinha” na boca de gente que gosta de demonstrar sabedoria e compaixão aos animais. Mas nada, nada, tira a beleza de uma fêmea grávida, de uma fêmea dando a luz, amamentando, cuidando... Até o ar cansado de uma mãe é lindo; todas elas são lindas.

Aproximei-me devagarzinho me arrastando de “bunda no chão”, na terceira aproximação ela correu ainda na intenção de que eu fosse atrás e lutar com ela bravamente para ganhar aqueles ossos babados e apetitosos. Inútil. Ela não me deixaria aproximar mais, resolvi então ir embora. Levantei-me e fui em direção ao pedaço de madeira que a separa da vida afetiva e saudável com os seus donos (por conta de uma briga sangrenta com sua irmã mais nova, uma Poodle de ar meio louca). Olhei para trás e ela continuava lá, absorta em restos mortais de um bovino abatido no passado. Fiz menção de voltar e dar-lhe um beijo na testa, mas, sabia que isso não seria possível. Soltei um beijo no ar em sua direção e disse “tchau!”. Ela levantou a cabeça e me encarou. Levantei a tábua, passei pro outro lado e desliguei a luz. Desci as escadas e algo me fez olhar pra trás, era ela. Olhando-me com pavor como quem dissesse: “porque você está indo embora? Volte... volte!”. Já estava acostumada com aquele olhar. Soltei outro beijinho e disse novamente “tchau, Ju...” e olhei pra frente pra não cair nos últimos degraus.

Lá embaixo estava a Poodle-doida, sorridente, arfando de felicidade em me ver. Agachei-me para acariciá-la e ela se esquivou de meus braços, pegou um de seus brinquedos, e saiu correndo latindo como quem dissesse “venha me pegar! Tente tirar de mim esse pato rosa apetitoso!” e eu olhei pra ela dizendo “o que há com vocês? Hoje não...” e me retirei.

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